Renato Pompeu
Depois de passar algumas semanas assistindo a aulas de História
no ensino fundamental e médio numa escola pública, cheguei à conclusão que as
deficiências do ensino público não devem ser atribuídas a falhas individuais
dos professores ou dos alunos, mas a toda uma estrutura há muito tempo obsoleta
que não consegue lidar com as condições atuais do aprendizado; afinal, nas
últimas poucas décadas o ensino público básico passou a ser frequentado por uma
população que tem uma cultura bem diferente da que tradicionalmente foi
educanda no ensino brasileiro – em termos mais simplificados, à grande maioria
de alunos brancos do passado sucede agora uma maioria de alunos pardos e
pretos, além de caboclos, para a qual é estranha e mesmo hostil a visão
triunfalista da lusitanidade espelhada pela formação tradicional dos
professores de História.
E me parece que as soluções não passam necessariamente por uma
reestruturação promovida pelo governo, como vem sendo feito há décadas com
mudanças mais no papel do que na prática, como a famosa e raramente
concretizada introdução dos “estudos afro-brasileiros e indígenas”. O problema
maior não é que falte vontade política aos governantes, na minha opinião. Os
governantes se têm empenhado em produzir currículos pluralistas, mas isto só
fica no papel, porque os próprios professores não têm maior conhecimento da
maioria das outras culturas que não a erudita oficial e as próprias autoridades
pluralistas não sentem na carne o que os alunos sentem em relação ao passado do
Brasil.
O que está faltando é uma mobilização geral da sociedade civil.
Penso numa mobilização como a que houve em torno da reforma universitária na
Argentina no começo do século 20, ou como a que ocorreu a partir de 1959 para a
alfabetização em Cuba. Essa mobilização tem sido prejudicada no Brasil porque
os setores dominantes da opinião pública, ou melhor, daquilo que já se chamou
de “opinião publicada”, sentem que seus filhos estão sendo bem atendidos pelo
serviço prestado por escolas particulares no ensino fundamental e médio e pelas
universidades públicas. E assim não se mobilizam para corrigir as situações
vigentes. Por outro lado, os setores dominados simplesmente não têm uma
alternativa à visão da “branquitude”. Minhas conclusões, ao fim dessas 400
horas-aula de estágio, é que todos se empenham ao máximo no ensino público – os
professores, diretores, coordenadores, serventes, os alunos, as autoridades
federais, estaduais e municipais do ensino.
Mas tudo esbarra na dificuldade de que os alunos, na maioria
não-brancos e com pai e mãe de pouca escolaridade e que trabalham o dia
inteiro, sem poderem dar atenção real aos filhos, vivem num mundo diferente dos
professores, quase todos brancos e oriundos de famílias escolarizadas e bem
estruturadas. Os professores se esforçam ao máximo, mas não conseguem se
comunicar com alunos que não têm a sua mesma experiência geral de vida Afinal,
os professores e os dez por cento de alunos que os professores dizem que querem
aprender têm a mesma visão dos que conquistaram o País desde a chamada
Descoberta, enquanto os noventa por cento não têm essa visão, sim a consciência
de que são descendentes dos que foram conquistados e escravizados, situação que
não se reflete nem nos livros didáticos, nem nas aulas expositivas, por maior
que seja a boa vontade de todas as partes. A grande massa dos alunos sequer tem
consciência do que seja tempo histórico, pois os pardos e pretos só passaram
muito recentemente a ser parcela mais consciente da história do povo
brasileiro, até poucas décadas atrás eram totalmente excluídos. Vamos às razões
pelas quais cheguei a essas conclusões.
Com mais de 70 anos de idade, vivi durante meses uma aventura
normalmente reservada a pessoas mais jovens e que raramente se pronunciam
abertamente sobre sua experiência: um estágio previsto para 400 horas-aula no
ensino público da cidade de São Paulo.
Acontece que em 2010 passei a cursar um curso de licenciatura em
História e o estágio fazia parte do currículo. Na verdade, eu deveria ter
começado o estágio no início do segundo semestre de 2011, mas meu tutor de
estágio, baseado no fato de que eu não pretendia ser professor, me dispensou
das 400 horas-aula. Só já no segundo semestre de 2012 é que o tutor me informou
que a instituição em que eu fazia o curso não havia aprovado a decisão dele e
havia decidido que, para obter o título de licenciado, eu tinha de realmente
prestar as 400 horas-aula, das quais pelo menos 150 horas em aulas no
fundamental e também pelo menos 150 horas no ensino médio.
Procurei em setembro de 2011 uma escola pública em que não fui
aceito, por falta de vagas de estágio – afinal o ano estava bem avançado. Fui
poucos dias depois a outra escola pública, em que fui aceito e no mesmo dia
comecei o estágio. Eu deveria acompanhar inicialmente as aulas dadas por um
professor de História, um cidadão de idade madura, calmo e tranquilo, que
descobri ser bastante competente e empenhado, embora me pareça que aplique
métodos errados.
Para ver como eu estava lidando com gente empenhada, basta
constatar o seguinte: o colégio havia passado por uma reforma recente em suas
instalações, tudo brilhava como novo, mas ainda havia trabalhos manuais a
fazer, pelo que entendi, remoção de entulho. A direção, no meu primeiro dia lá,
convocou o professor que eu acompanharia no estágio para ajudar nesses
trabalhos no sábado, dia de folga, e ele se dispôs com toda a boa vontade.
Aliás, tirando o ensino propriamente dito, na medida em que não
é assimilado pela maioria dos alunos, como se verá, tudo funcionou
perfeitamente no colégio, sempre limpo e arrumado, tudo bem organizado, a
administração, as inspetorias, etc. Também, antes de irmos à primeira aula,
ainda quando estávamos na sala dos professores, esse professor estava sendo entrevistado
por um representante da Secretaria da Educação. (Entre parênteses, essa é mais
uma indicação de que os problemas do ensino público não advêm da falta de
empenho – a Secretaria estava querendo saber o que estava acontecendo para o
ensino não ir para a frente).
O professor disse que não tinha problemas de disciplina com os
alunos, pois os respeitava e era respeitado por eles, e que achava inútil e
contraproducente “bater boca com aluno”. Acrescentou que só dez por cento dos
alunos queriam realmente aprender e esses de fato aprendiam, passavam nos
vestibulares mais rigorosos, etc. Os noventa por cento que não pretendiam
estudar e aprender, e que vinham à escola por causa da merenda, dos esportes e
outras atividades e por imposição dos pais, não eram problema dele, eram
problemas de suas famílias, que os professores não podem resolver.
Alguns desses que “não querem aprender”, eu soube por uma
professora na sala dos professores, são jovens de famílias mais prósperas que
não se deram bem em escolas particulares e, por isso, os pais os matricularam
em escolas públicas, não tanto, como se poderia imaginar, por ser pretensamente
mais fácil passar na escola pública, por causa da progressão continuada (o que
efetivamente acontece, esses alunos avançam mais na escola pública do que na
particular de onde vieram), mas mais possivelmente para não gastar dinheiro com
quem “não merece”.
Mas a maioria dos “noventa por cento que não querem saber de
nada” são na verdade “periféricos” que vivem em outro universo cultural que não
o das autoridades e professores. Saímos daquela entrevista tendo como destino a
primeira aula em que eu ia ser estagiário, numa classe do 1º ano do ensino
médio. Não se tratava de uma aula de História, tratava-se de o professor de
História acompanhar provas de Matemática e de Biologia.
Ele distribuiu as provas impressas e ficou vagueando pela sala.
Os alunos, na maioria não-brancos, mas com mais brancos do que pretos (isto é,
quase todos os não-brancos eram pardos), conversavam tranquilamente com os
colegas da frente, de trás e dos dois lados, enquanto faziam as provas, e ainda
trocavam bilhetinhos. O professor pedia às vezes que ficassem quietos.
As provas me pareceram bem formuladas. Na verdade não entendi
nada das perguntas, nem de Matemática, nem de Biologia, o que me pareceu
indício de razoável complexidade. Uma hora em que o professor se ausentou (como
veremos, ele é bastante solicitado para diferentes tarefas e nesse momento foi
chamado para outra coisa), eu me vi sozinho diante da classe. Fiz um
experimento: perguntei se eu poderia fazer perguntas enquanto eles respondiam
por escrito às questões da prova e eles disseram que sim, mesmo porque vários
já tinham entregado o trabalho.
Pus-me a fazer perguntas sobre futebol, mostrando como o futebol
reflete a liberdade de circulação e a igualdade de direitos, conquistas bem
recentes na história da humanidade, e como ele está ligado à Revolução
Industrial. Isso despertou grande interesse entre os alunos. Quando o professor
retornou, permitiu que eu continuasse dando a “aula” sobre futebol.
A conclusão que tirei foi de que, se se trata de um tema do
universo cultural dos alunos, eles se interessam e ficam quietos. Assim
terminou meu primeiro dia de estágio, porque eu estava já com a cabeça por
demais cheia de novidades e precisava assimilá-las antes de assistir a mais
aulas.
No segundo dia, numa outra classe do 1º ano do ensino médio, com
a mesma composição étnica, o professor de História foi chamado a comandar
provas de Física e de Português. A de Física nem olhei, a de Português era
bastante exigente, apresentava um texto – uma resenha de livro – para análise
do conteúdo e a questão cinco perguntava como em novas leituras do mesmo texto
literário se notam coisas que não haviam sido percebidas na primeira leitura.
Mais uma vez, o professor foi chamado para outra tarefa, mas,
como era uma classe mais “brava”, não me deixaram sozinho com ela: chamaram um
estagiário de Educação Física, que tinha muito mais experiência do que eu, pois
estava lá há meses e inclusive conhecia bem a classe. Uma aluna ergueu o braço
e comentou que havia erros de português nos enunciados da prova de Português. O
estagiário de Educação Física respondeu que eram erros de digitação. Mas a
aluna insistiu: eram erros de português mesmo (queria dizer que eram erros de
gramática, não de grafia). O estagiário insistiu em que eram erros de
digitação.
Mas aí surgiu outro problema: vários alunos se queixaram que não
entendiam aquela questão cinco e uma aluna perguntou se essa quinta questão se
referia ao texto apresentado na primeira questão ou a textos literários em
geral. O estagiário de Educação Física e eu tentamos responder do que se
tratava, procuramos explicar a diferença entre a primeira leitura e as demais
leituras, como se descobrem coisas novas, etc. O estagiário de Educação Física
e alguns alunos disseram também que a questão cinco se referia ao texto
apresentado na questão um. Entretanto, como é duvidoso chamar de “texto
literário” uma “resenha de livro”, ainda mais, como era o caso, resenha de
livro de não-ficção, eu me dirigi à carteira daquela aluna e disse a ela que eu
não sabia responder à pergunta que ela tinha feito.
Ela respondeu que estava lidando como se o tema fossem textos
literários em geral, ou seja, ela resolveu contrariar a interpretação do
estagiário de Educação Física e dos outros alunos. Ainda tive tempo de explicar
a origem da palavra “Corinthians” – habitantes da cidade grega de Corinto, em
inglês (há uma Epístola ao Coríntios, de São Paulo, no Novo Testamento), e nome
de um clube inglês que viera ao Brasil logo antes da fundação do Corinthians
Paulista, lembrando que os esportistas ingleses do século 19 se julgavam
herdeiros dos antigos atletas olímpicos gregos e davam a seus clubes nomes como
Athenians, Spartans - antes de o professor de História voltar já pouco antes de
bater o sinal do fim da aula.
Quatro dias depois, voltei a acompanhar uma aula, agora do 2º
ano do ensino médio. Novamente, o professor foi chamado para fazer outra coisa
em outro lugar, alguma tarefa urgente. Mandou uma aluna copiar na lousa um
trecho sobre a história da África Subsaariana e os demais copiarem cada um no
seu caderno o que estava sendo escrito na lousa. Chamou isso de “atividade”, e
saiu da sala para cumprir a tarefa urgente, me deixando sozinho com a classe.
Eu estranhei muito aquela “atividade”, que me pareceu apenas um
estratagema para ocupar a classe enquanto o professor atendia a algo mais
urgente (fiquei sabendo depois que ele tinha tido de lidar com três classes no
mesmo horário, uma delas aquela em que eu estava sozinho). Perguntei aos alunos
se estavam entendendo o que estavam copiando, e uma aluna respondeu que estava
entendendo “o que estava escrito”, mas não estava entendendo “do que se tratava”.
Fiz uma breve explanação sobre as diferenças entre a África do
Norte e a África Subsaariana e eles pareceram mais sossegados. Em conversa com
os alunos fui informado de que não se tratava de um estratagema improvisado
para a situação que se criara, de o mesmo professor estar com três classes ao
mesmo tempo. E sim que se tratava de uma atividade corrente. Vários professores
mandam copiar da lousa trechos do livro didático, e muitas vezes sem explanação
nenhuma, me disseram os alunos.
No dia seguinte, acompanhei
aulas para o 3º ano médio e para o 2º ano médio, em que não houve aplicação de
provas, nem “atividade”, mas também não houve aulas – e sim o professor ficou
corrigindo provas propriamente de História que tinham sido dadas em aulas
anteriores. Fiquei conversando com os alunos, novamente sobre futebol, direitos
de ir e vir e igualdade perante a lei, revolução industrial. Na classe do 2º
ano, o professor me mostrou um “erro” que achou curioso – a uma pergunta sobre
as revoltas na Regência, uma aluna respondera que na Bahia ocorrera a
“Rabanada”.
O professor simplesmente
deu zero para a resposta, contrariando o que eu aprendera na faculdade sobre o
“erro”. Me tinham ensinado que o “erro” é uma “tentativa de acertar” e que deve
ser discutido com o aluno o que o levou a cometer o “erro”. No caso, logo
percebi que a menina havia confundido “Sabinada” da Bahia com a “Cabanagem” do
Pará, lembrou-se vagamente de ter ouvido “Cabanada” e, como é muito comum com
todo mundo, confundiu uma palavra não-familiar com uma palavra familiar, como
“rabanada”.
Seria muito instrutivo
que alguém discutisse isso com ela e lhe mostrasse como cometera aquele “erro”
na sua “tentativa de acertar”; ouso apostar que da próxima vez ela não erraria.
(Também existe a possibilidade de a aluna simplesmente se estar divertindo com
uma realidade que ela sentia que não lhe dizia respeito), Senti também que o
professor, na faculdade que frequentara, não tinha tido uma formação em
Psicologia da Educação tão esmerada quanto tive na minha. E que não sabia lidar
com pessoas que tivessem uma experiência de vida diferente da sua própria. Isso
apesar de ele fazer tudo o que estava a seu alcance e mesmo exceder isso.
Acompanhei mais uma
correção de provas numa classe do 2º ano, e novamente tentei interessar os
alunos falando sobre futebol, mas desta vez só um aluno respondeu a minhas
perguntas (do tipo “Escravo podia jogar futebol? Onde há mais liberdade e
igualdade, num campo de futebol ou na sociedade em geral? Onde há mais
oportunidades para os não-brancos, num campo de futebol ou na sociedade em
geral?”, com a conclusão de que “Vejam, o futebol envolve um projeto para a
nossa sociedade ser melhor do que é”, conclusão que só interessou ao aluno que
respondia e a uma aluna que ficou me olhando esperando mais).
Infelizmente, cometi um
erro. Diante do desinteresse de praticamente todos, comuniquei que “Bem, como
vocês não estão interessados, não vou falar mais”. Quando cheguei à conclusão
de que é necessário insistir sempre, já era tarde.
Guardei a lição para
aproveitar mais tarde. Um dia depois, tive uma experiência ainda muito mais
difícil, meu primeiro estágio em aula no fundamental. Era a 6.a série.
Novamente o professor ficou corrigindo provas, mas uma professora entrou na
sala, pediu a atenção de todos e me pareceu ser algo assim como coordenadora de
disciplina (depois eu soube que não era, e sim que, em suas aulas de Português,
procurava discutir bastante temas relacionados com o bullying), pois deu uma
violenta bronca na classe, que tinha segundo ela desrespeitado uma professora
que era “uma mãe para vocês”; comunicou que na véspera dez alunos daquela
classe tinham sido “excluídos” e que outros mais seriam, que ela conhecia muito
bem aquela classe, pois dera aula para eles anos antes, convocou alguns alunos
para a acompanharem, entre eles uma aluna e um aluno que começaram a bater
boca, ela o acusando de ter xingado a mãe dela, ele negando.
A professora mandou os
alunos limparem a sala – havia uns papéis no chão – e arrumarem as fileiras de
carteiras e cadeiras. O aluno acusado de xingar a mãe da colega respondeu que
não ia limpar nem arrumar nada, pois não havia sujado nem desarrumado nada, mas
a maioria colaborou e alguns até varreram a sala, enquanto o professor
continuava a corrigir tranquilamente as provas.
A professora saiu com os
convocados, e eu, para fazer alguma coisa, perguntei para que time cada um
torcia. A maioria não me deu atenção, mas uns quatro ou cinco me rodearam e
ficamos de novo conversando sobre futebol, liberdade de ir e vir, igualdade de
direitos, Revolução Industrial. Gostaram muito, me chamaram de “sabe-tudo”.
Depois, os alunos que
tinham sido convocados a sair da sala voltaram, e um dos seus colegas que me
tinha ouvido atentamente disse ao acusado de xingar a mãe da aluna e que tinha
se recusado a limpar e a arrumar a sala: “Você vai ser expulso”, e teve a
resposta: “Vou”. Nessa mesma classe, notei que, enquanto os outros conversavam
e se agitavam, andando pela sala, uma aluna preta estava quieta e isolada, e de
cara feia.
Fui até ela e perguntei:
“Por que você está tão quieta e isolada?” Ela respondeu, “Não é nada, é que
estou com dor de dente” e me mostrou uma embalagem de analgésico. Também, como
eu não estava entendendo o que tinha acontecido para os alunos serem excluídos,
perguntei a vários alunos, fiz uma pergunta à classe toda, e só me responderam
que “eram alguns fofoqueiros” que indispunham a classe com os professores.
Quando deu o sinal e os alunos saíram, fiz a pergunta ao professor, que deu de
ombro, comentou que “o fundamental é assim” e não falou mais nada.
Na sala de professores,
vários me disseram que o fundamental é muito mais “bravo” do que o “médio”.
Passou o fim de semana. Aí, cheguei de manhã à sala dos professores, onde a
coordenadora anunciou que uma classe ia encenar uma peça de teatro e que os
pais só dos alunos dessa classe seriam convidados para virem à escola, mas não
seriam informados de que era para verem a peça, pois seus filhos queriam fazer
uma surpresa a eles.
Vi que era mais um esforço
pedagógico, ou seja, que todos neste caso, alunos e professores, faziam o que
podiam. Dali saí para a classe e acompanhei, novamente, correção de provas, do
1º ano médio. Eu ainda não tinha visto nenhuma aula de verdade. Entrou uma
professora, acompanhada de um jovem, ambos convidando para verem uma peça de
teatro, mas era outra que não a que ia ser encenada por alunos. Esta era de
atores profissionais, a 7 reais a entrada.
O rapaz que acompanhava a
professora era um dos atores profissionais e contou que era a história de um
jovem viciado em drogas que morre num desastre de carro e que, depois de morto,
começa a lembrar sua vida. (Pouco antes, a diretora me havia dito que o
principal problema dos alunos era a droga. Mas eu não tinha tido percepção disso).
Isso tudo me pareceu muito adequado e interessante, uma maneira curiosa de
lidar com um tema tão triste.
Depois que a professora e
o ator saíram um aluno me disse que o professor, que continuava a corrigir
provas, era bom, mas não se impunha; mas um grupo de cinco alunas e dois alunos
pediu para falar comigo e se queixou que o professor não lhes explicava as
coisas, simplesmente transmitia o que estava no livro. Perguntei o que eles
estavam estudando de História, disseram que eram os maias. Eu contei a eles que
os maias jogavam uma espécie de futebol, só que não era com os pés, era com os
quadris, um jogo bastante violento, e que ao fim alguns jogadores eram
sacrificados aos deuses.
As alunas disseram que
esse tipo de coisa é que o professor não explicava. E começaram a me fazer
perguntas pessoais. Parece que estavam me avaliando como modelo para elas. Uma
delas, preta, apontou para si mesma e para as outras, pardas, e me perguntou:
“É para isso que você quer dar aula? É melhor você ir para uma escola particular,
não se preocupe com esse tipo de gente que tem aqui, não vale a pena”. As
outras concordaram. Soou o sinal e elas, como os outros alunos, foram embora.
A aula seguinte era para
o 2º ano médio. Novamente, o professor ficou corrigindo provas, mas sem alunos
– como todo o colégio, tinham ido ao pátio para acompanhar o show de uma banda.
Mais um esforço pedagógico, de procurar fazer com que os “noventa por cento” se
interessassem pela escola. Agora, no dia seguinte, finalmente assisti a uma
aula, que durou dois horários. Foi uma experiência marcante. Era uma classe do
6º ano do fundamental e a aula era sobre as revoltas na Regência.
A classe era muito
indisciplinada (era a mesma em que dez alunos haviam sido excluídos antes de eu
conhecer a classe e não vi alguns dos que foram convocados a sair da sala de
aula no primeiro dia em que acompanhei essa turma, inclusive não vi o acusado
de xingar a colega; presumi que tinham sido excluídos também). Tanto que, além
do professor, havia uma inspetora que periodicamente dava uma bronca sentida em
todo mundo, mas isso não interrompia a balbúrdia, mesmo porque a inspetora
periodicamente saía da classe – tinha mais coisas a fazer.
O professor,
impavidamente dava aula – escrevia na lousa os tópicos e falava (pouco) sobre o
tema - enquanto os alunos, que supostamente copiavam o que estava na lousa,
conversavam ruidosamente entre si, andavam pela classe, saíam da sala de aula e
voltavam, jogavam bolinhas de papel uns nos outros, comiam aqueles almoços em
copões de plástico, atiravam bolinhas de papel tentando acertar os buracos das
escotilhas da parede que dava para o corredor.
Em meados do segundo
horário, o caos estava instaurado, a ponto de o professor – uma das pessoas
mais estoicas e mais tranquilas que conheci na vida, raramente afetado por
qualquer coisa que acontecesse à sua volta – finalmente ter desistido de dar
aula, limitando-se a passar visto em cadernos que lhe eram entregues. Notei que
mesmo os alunos mais indisciplinados apresentavam os cadernos.
Como o professor havia
dito que o padre Feijó tinha sido indicado por Dom Pedro 1º para ser tutor de
seu filho e sucessor, por ocasião de sua abdicação (o professor usou o termo
“renúncia”, mostrando finalmente um esforço de se aproximar do universo
cultural de seus alunos), alguns alunos perguntaram o que era “tutor”. Numa
hora em que a inspetora estava presente, um aluno perguntou a ela, e não ao
professor, quem havia construído um importante e secular prédio perto da
escola.
A inspetora não sabia, o
professor também não. Por acaso eu havia estudado esse prédio durante o curso
na faculdade, pedi licença para falar. Estranhamente a classe se aquietou e me
ouviu atentamente dizer que aquele prédio havia sido construído mais de um
século antes por operários imigrantes que passaram a morar ali perto, dando
origem ao bairro próximo à escola.
A lição que tirei foi a
seguinte: que sentido têm, para jovens de pouca leitura e sem outra memória
natural e familiar da história do País que não seja o fato de que seus ancestrais
foram escravos, as revoltas durante a Regência? Simplesmente me parecia que
aquilo que o professor estava heroicamente narrando e explicando, eles sentiam
que não lhes dizia respeito. Quando, porém, eu falei de um prédio importante
para eles, ficaram interessadíssimos. Fiquei pensando: e se o professor tivesse
pedido que cada um pesquisasse a história de sua própria família, a história de
seu próprio bairro, e a partir desses dados o professor fosse explicando como
tudo aquilo se enquadrava na grande história do País e do mundo?
Também, quando o
professor tentou explicar o nome da revolta da Balaiada, explicando que balaio
é cesto, pensei em cantar o belo folclore “Balaio meu bem, balaio sinhá, balaio
do coração; Moça que não tem balaio sinhá, bota as coisas no chão”; pensei em
indicar filmes tipo “Carlota Joaquina” e “Independência ou morte”.
Terminada a aula, eu
disse ao professor que eu o considerava um herói; considero mesmo, um professor
dedicado, que nunca desiste, embora eu ache que os seus métodos são em grande
parte equivocados. Perguntei a ele se achava que os alunos tinham assimilado o
que ele lhes transmitira. Ele respondeu que as alunas da primeira fileira à sua
direita (quatro brancas) e mais uns dois alunos (pelo menos um deles branco) aproveitavam
bem as aulas, o resto não queria nada com nada. O grande problema é que, como
vimos, ele acha que isso não é problema dele, é problema das famílias desses
alunos que “não querem aprender”.
No intervalo, na sala de
reuniões, onde estavam os professores porque a sala dos professores estava
sendo encerada, ouvi professoras jovens criticarem a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação, para elas cheia de termos empolados e impossível de aplicar. Eu
havia estudado essa Lei na faculdade e me pareceu mais um documento bem
intencionado e utópico que não tinha tido maiores efeitos práticos. (Dias
depois, pude me aprofundar no assunto.
Uma professora me disse
que todos os numerosos planos bem intencionados lançados desde a
redemocratização sempre foram impostos de cima para baixo, sem levar em conta
as condições concretas do ensino em cada escola, e sim baseados numa visão
geral. Às escolas cabe apenas adaptar as condições gerais vindas de cima às
condições reais de cada escola. Segundo essa professora, isso nunca vai dar
certo).
Em seguida, acompanhei o
professor numa aula num horário só para outra classe do 6º ano do fundamental,
de comportamento bem mais tranquilo. Ele fez um discurso de homenagem a essa
classe, dizendo que era a melhor classe que ele tinha tido em seus anos naquele
colégio. Como a turma estava adiantada, ele não deu aula e deixou o pessoal se
recrear como quisesse.
Assim não foi desta vez
que pude ver como seria uma aula numa classe “comportada”. Dias depois, no
mesmo dia da semana, cheguei cedo, mas o professor estava em reunião e não
houve aulas de manhã, para o ensino médio. Fiquei na sala dos professores e
ouvi uma história sinistra: uma professora contou que, em outra escola, ela se
recusou a inscrever um aluno que estava em liberdade vigiada e que prometera
“arrasar” quando voltasse a essa escola. Ela providenciou a transferência dele
para outra escola, mais próxima da casa dele, e onde ele não teria uma patota
já pronta.
Por causa disso, a
professora foi intimada por denúncia de descumprir o direito ao estudo e teve
de depor perante uma juíza. Esta decidiu que o aluno de fato deveria ser
transferido para outra escola. Mas, durante dez dias, ele se postou das 7 da
manhã às 11 da noite na calçada da escola de sua preferência. A professora se
queixou à juíza, o rapaz sumiu, e ela nunca mais soube dele. Já à tarde,
período do fundamental, no horário duplo da primeira classe do 6º ano, assisti
a um espetáculo inesquecível.
O professor ainda não
tinha voltado de uma reunião dos professores com a diretora, de modo que eu
fiquei sozinho lidando com aquela classe, uma das mais indisciplinadas do
colégio. Desta vez não tive êxito em tentar interessá-los falando de futebol.
Eles ficavam falando alto, e mesmo gritando, se movimentando por toda a sala,
desarrumando as cadeiras. Não desisti, continuei falando, mas aí o professor
chegou, começou a escrever na lousa, indiferente à bagunça, sobre a Guerra do
Paraguai, falando em voz alta algumas frases do que escrevia, indiferente ao
fato de que a grande maioria não se preocupava em copiar nada. Uma hora, porém,
até ele perdeu a paciência. Foi quando tocou o celular de uma aluna.
É proibido entrar com
celular, muito menos se tolera celular ligado. Aí o professor chamou a
vice-diretora. Esta, uma senhora de meia-idade, atarracada, deu uma violenta
bronca na classe, com fúria, com raiva, como nem o professor nem eu
conseguiríamos demonstrar. Isso surtiu efeito imediato. Todos silenciaram,
arrumaram-se nas fileiras e começaram a copiar. A vice-diretora comunicou que
aquela classe estava excluída de um campeonato esportivo. Dirigiu-se
particularmente a um aluno branco, o mais indisciplinado da classe, comentando
que ele ia bem nas provas – tinha tirado dez, mas não aproveitava isso por
causa de sua indisciplina. Paradoxos do ensino.
Outro paradoxo: a
vice-diretora fez uma crítica indireta aos métodos didáticos do professor. Ela
disse bem alto para a classe, bem ao lado do professor: “Por mim vocês não
copiavam nada, só anotariam o que o professor ficasse falando”. O professor
continuou escrevendo na lousa e os alunos continuaram copiando. Foi só a
vice-diretora sair que o burburinho recomeçou, agora um tanto mais sossegado,
alguns pararam de copiar. Vi que ser “bonzinho”, como o professor e eu, não era
produtivo.
Quando o professor
comentou que o Paraguai não podia exportar seus produtos sem passá-los por
países vizinhos, pois não tinha saída para o mar, um aluno perguntou por que o
Paraguai não exportava seus produtos de avião. Mais uma indicação de que eles
não têm uma dimensão natural e familiar do tempo histórico, pensam que tudo
sempre foi como é agora.
Logo depois, fomos para
outra classe do 6º ano do fundamental, aquela que o professor tinha homenageado
como a melhor classe que conhecera em seus anos de colégio. Ele deu a mesma
aula sobre a Guerra do Paraguai que havia dado na outra classe, do mesmo jeito,
escrevendo na lousa e fazendo uns raros comentários, apenas com o texto na
lousa reduzido pela metade porque o horário desta classe não era duplo.
Me espantei porque a
classe “comportada” não era tão comportada assim. Falavam alto entre si, numa
repetição do burburinho “sossegado”, embora quase todos ficassem copiando o que
o professor escrevia na lousa. Eu estava descobrindo, perplexo, o que é considerado
uma “aula”. No intervalo, na sala dos professores, fiquei sabendo que aquela
aluna que me aconselhara a ir dar aulas numa escola particular fora pega
mostrando a outras umas roupas oncinha e uns biquínis que estavam em sua
mochila. Em seguida, fiquei vários dias sem atividades no estágio, porque o
professor que me orientava ficou dias seguidos sem comparecer ao colégio.
Quando o professor
voltou, no primeiro dia apenas conversei com ele, que não compareceu a nenhuma
aula. No segundo dia, já véspera de um feriadão, dos mais de 50 alunos de uma
classe do primeiro ano médio a frequência durante a aula variou apenas de 9 a
14, dos quais apenas um aluno e uma aluna ficaram fazendo anotações a partir do
livro, enquanto o professor fazia anotações administrativas; fez também a
chamada. Os demais alunos ficaram falando alto e andando pela sala e fizeram
uma espécie de concursos de arroto ou imitação de vômito. Em seguida houve nova
“aula” semelhante, para outra classe do primeiro ano médio, tendo comparecido, dos
também mais de 50 alunos, apenas 15, dos quais 4 somente liam a apostila e
faziam anotações.
Essa classe era menos
barulhenta do que a anterior, os 11 que só conversavam estavam reunidos em dois
grupos, um deles só de meninas e o outro só de meninos. Estranhamente, a classe
ficou ainda menos barulhenta num período em que o professor deixou de fazer
anotações administrativas e se ausentou da classe. Fiz a hipótese de que boa
parte do “mau comportamento” não se deve apenas à natural inquietação de adolescentes,
mas mais especificamente a uma vontade de desafiar o professor, ou de testá-lo.
Um grupo de alunos de
outra ou outras classes entrou para comunicar que dali a 15 dias ocorreria uma
festa com música à qual os que quisessem comparecer deveriam trazer doces,
salgados e refrigerantes. Minha primeira aula Segundo o professor de História,
90 por cento dos alunos não se interessam em estudar; a observação indicou que
os 10 por cento que se interessam em estudar, segundo o professor, são na
maioria meninas brancas.
A observação indicou
ainda que as classes do ensino médio são bastante indisciplinadas. Assim se
descreve uma aula típica de História no ensino médio da EE: o professor vai
escrevendo na lousa um texto sobre o tema da aula e os alunos devem copiar esse
texto, o que a maioria não faz; ao contrário, ficam conversando alto e
passeando entre as fileiras de carteiras, saindo e entrando da sala, comendo,
tomando refrigerante, jogando bolinhas de papel um no outro. De vez em quando o
professor faz um comentário, resumindo em voz alta um trecho do texto.
De vez em quando algum
aluno faz alguma pergunta, em geral disparatada. Estabeleci como hipótese
provisória que os alunos, na maioria pardos, não se identificam com a História
tal como lhes é ensinada por não se identificarem com o lusocentrismo algo
triunfalista encarnado pelo professor. A noção de brasilidade dos alunos parece
muito mais definida em torno do futebol e da música do que pela memória
coletiva de um destino comum.
O Brasil das aulas não é o
Brasil que vivenciam. Também os alunos não são estimulados a fazerem exercícios
fora da aula, nem estão acostumados a leituras adicionais. Diante de toda essa
situação, resolvi não cumprir a recomendação de fornecer recortes de jornais,
pois seriam ignorados pela grande maioria. Ao invés disso, combinei com a
direção da EE e com o professor de História que eu daria uma aula sobre
partidos políticos no Brasil para uma classe do 3º ano do ensino médio.
Inicialmente eu ficaria
sozinho diante da classe; a certa altura o professor entraria para agir
conforme as circunstâncias (levando em conta a indisciplina). Na classe havia
uns 30 alunos presentes. Estavam, quando entrei, conversando em rodinhas, mas
eu pedi para falar e eles foram para seus lugares e ficaram em silêncio. Eu
disse que era estagiário, candidato a professor, comuniquei meu nome e
acrescentei que iria dar uma aula sobre partidos políticos.
Em seguida perguntei quem
se interessava por política. Apenas quatro alunos levantaram a mão. Perguntei
em seguida quem não se interessava por política. Pelo menos 15 alunos
levantaram a mão. Perguntei quem, dos alunos interessados em política, poderia
explicar a diferença entre o PT e o PSDB. Um aluno levantou a mão. Então sugeri
a ele que procurasse explicar a diferença entre o PT e o PSDB para um aluno
desinteressado da política, por mim indicado. Minha sugestão foi atendida com a
fala de que o PT “é um partido de esquerda, favorável ao comunismo e aos
trabalhadores” (nisso foi interrompido por uma aluna que se havia declarado
interessada em política, a qual disse que o PT é composto “de ladrões”), e o
aluno expositor, sem dar atenção à interrupção, acrescentou que o “PSDB é um
partido de direita, favorável ao capitalismo e aos ricos”.
Diante disso, eu afirmei
que apenas alguns integrantes do PT e do PSDB correspondiam àquela descrição.
Expliquei que o PT pretende melhorar a vida das pessoas menos favorecidas por
meio da redistribuição de renda, tipo Bolsa-Família; por meio do aumento real
do salário mínimo e por meio do estímulo estatal ao crescimento econômico.
Enquanto o PSDB defende a tese de que a vida de todos vai melhorar se houver
menos interferência estatal na economia, pois assim os empresários investiriam
mais e garantiriam mais empregos. Acrescentei que o PT tinha tido até agora
mais êxito com sua política do que o PSDB com a dele.
Mudei em seguida o
enfoque, perguntando se algum dos alunos presentes sentia a presença de algum
partido em sua vida cotidiana. Nenhum disse que sentia essa presença e vários
disseram que não sentiam nenhuma presença de algum partido em sua vida. Aí
entrei propriamente no tema da aula tal como foi proposto no Caderno de
Prática, com a deixa de que no Brasil com raras exceções os partidos foram
criados de cima para baixo e discorri extensa e detalhadamente sobre o
histórico da vida partidária no Brasil, primeiro sobre o coronelismo dos
Partidos Republicanos estaduais, depois sobre as semelhanças e as diferenças
entre o período da Constituição de 1946 e o da Constituição de 1988. Apontei as
semelhanças e diferenças entre o PTB e o PT, entre a UDN e o DEM e entre o PSD
e o PMDB.
Expliquei que o PSDB não
tinha equivalente no período de 1946 a 1964, pois começou como dissidência de
esquerda do PMDB e depois, por ter o PT preenchido todo o campo da esquerda, se
tornou mais conservador, pois a política odeia o vácuo e o DEM desmoralizado
não representava mais o campo da direita, vindo assim o PSDB a substituir o DEM
como equivalente atual da UDN.
A essa altura, eu, que
estava bastante surpreso com o comportamento disciplinado e silencioso da
classe, diferente do que eu presenciara em outras aulas, dadas pelo professor,
notei que, ao fundo, três alunos conversavam entre si, porém em voz baixa.
Perguntei a eles se a aula não estava sendo interessante, responderam que não
se interessavam por política, mas deixaram de conversar entre si.
Encerrando a parte sobre
a semelhança do PSDB atual com a UDN, afirmei que ambos se notabilizaram por
denunciarem eloquentemente a corrupção, embora ambos abrigando corruptos em seu
próprio seio. Aqui, a aluna que dissera que o PT tinha ladrões me perguntou se
eu era petista. Respondi que não, não sou ligado a nenhum partido. Falei em
seguida sobre o PMDB, sendo logo interrompido pelo aluno expositor, que afirmou
que o PMDB sempre aderia ao governo, fosse qual fosse o governo.
Eu então aproveitei para
discorrer sobre a história do PMDB, primeiro como oposição consentida, como
MDB, ao regime militar; depois como “partido-ônibus” de todas as correntes contrárias
ao regime militar, finalmente como “o PSD de hoje”. Também aproveitei para
falar sobre a política no governo militar, sobre a Arena e o MDB. Nisso, aquele
aluno expositor afirmou que a ditadura militar não admitia oposição. Respondi
que muitos estudiosos não usam o termo “ditadura militar” e preferem o termo
“regime militar” porque havia um partido de oposição que concorria às eleições,
mas a maioria votava no partido que defendia o regime; quando o partido de
oposição passou a ganhar eleições o regime militar foi chegando ao fim, não
sendo isso tudo característico de uma ditadura no sentido de não haver
oposição.
Enquanto eu dizia isso, e
antes que eu pudesse esclarecer meu pensamento inteiro, o professor entrou na
sala e, corretamente, observou que no regime militar havia muitas leis
restritivas, especialmente aos movimentos de trabalhadores e sociais, e que
começaram a ser abandonadas depois das grandes greves no ABC no fim dos anos
1970. Observou ainda que “Lula afirmou que as greves não eram por aumento de
salários, pois os metalúrgicos do ABC já ganhavam bem, mas sim que o objetivo
do movimento era instaurar a democracia”.
O aluno expositor
perguntou qual era o papel do PC do B e o professor afirmou que “o PC do B é
diferente do PCB, pois, enquanto o PCB seguia a linha soviética, o PC do B leva
em conta a realidade brasileira”, sem esclarecer que o PC do B passou por fases
“chinesa” e “albanesa”. Em seguida, apesar de não ter soado o sinal, o
professor sumariamente declarou a aula encerrada e dispensou os alunos. Creio
que fiz o que pude para transmitir o conteúdo do Caderno de Prática dentro das
possibilidades reais existentes na sala de aula.
Quando os alunos estavam
saindo, perguntei a vários deles se a aula havia sido proveitosa. A maioria disse
que sim, alguns insistiram em que não se interessam por política. Mas uma aluna
que, no começo da aula, fora uma das que levantara a mão como desinteressada em
política, afirmou que aprendera “muita coisa” e ficara mais informada “da
situação atual”. No entanto, embora eu sempre pedisse para os alunos darem sua
opinião, durante a aula só o aluno expositor e a aluna que o criticou falaram
alguma coisa.
Na próxima “aula” a que
assisti, para uma classe do primeiro ano médio, o professor, chamado para outra
tarefa em outra classe, simplesmente escreveu frases de Gandhi na lousa,
pedindo que os alunos as comentassem por escrito e dizendo que se tratava de
uma “atividade”. E me deixou sozinho com a classe. Quando a aula começou, havia
somente seis alunos da classe de cinquenta alunos, pouco a pouco o número foi
aumentando até vinte.
Ficaram conversando um
tanto barulhentamente enquanto o professor estava presente e se aquietaram,
estranhamente, quando ele foi embora e fiquei eu sozinho “tomando conta da classe”,
mas de todo modo pouquíssimos, uns cinco, realizavam o exercício. Uma aluna me
perguntou se era para entregar o exercício, eu não soube responder, mas disse
que com toda certeza o professor iria passar o visto. Mais de meia hora depois,
o professor apareceu rapidamente na porta, transmiti a ele a pergunta sobre a
entrega e ele respondeu que era “para deixar no caderno”.
Notei que, enquanto o
professor estava na porta, os alunos passaram a se comportar inadequadamente,
andando pela sala e falando alto, numa indicação de que pouco o respeitavam. A
certa altura, trazido por uma coordenadora, entrou um funcionário do Senac para
convidar os alunos a se inscreverem num curso de Hospedagem, dando uma ideia do
tipo de profissão a que se imagina que os alunos dessa escola podem aspirar. Só
ao fim de sua algo prolongada exposição é que o funcionário do Senac informou
que o curso era reservado a alunos do segundo e terceiro anos do ensino médio,
o que despertou ruidosas risadas dos alunos, que afinal eram do primeiro ano,
não podiam nem se inscrever no curso, e saudaram com essas risadas barulhentas
a total inutilidade de toda a divulgação.
No fim da aula, o
professor voltou e comunicou que os alunos deveriam posar para fotos destinadas
a um álbum comemorativo dos 75 anos do colégio. Por insistência do professor,
eu o substituí na pose. Assim terminou a “aula”. A aula seguinte, para outra
classe do primeiro ano médio, foi ainda mais estranha. O professor novamente
foi embora, sem me explicar nada, e, enquanto eu imaginava que ele tinha sido,
como muitas vezes acontecia, chamado para outra tarefa em outro lugar, os
alunos me disseram que ele tinha ido “arrumar o carro” no estacionamento do
colégio, isto é, tirar seu carro do lugar para facilitar a movimentação do carro
de outro colega.
Não pude saber se isso
era verdade. Os alunos ficaram falando muito alto e andando pela classe,
indiferentes à minha presença. Perguntei se eles se interessariam em fazer a
mesma “atividade” da classe anterior, “atividade” que ainda constava na lousa,
uma aluno me respondeu que haviam feito aquele mesmíssimo exercício no dia
anterior. Vários começaram a sair da sala, carregando suas mochilas, perguntei
o que estava acontecendo e me disseram que tinham sido chamados para jogar
voleibol. Depois voltaram, dizendo que o voleibol era para mais tarde, e em
seguida foram todos embora.
Na “aula” seguinte a que
compareci, para o 6º ano do fundamental, o professor novamente não deu aula.
Ele escreveu na lousa “Estudar para Saresp”, espécie de exame estadual, e ficou
em sua mesa anotando os meus horários de estágio. Não apagara o que estava
escrito na lousa, algumas coisas da aula anterior e coisas escritas pelos
alunos, como “xota” e “pau”, de modo que sua recomendação de estudar para
Saresp não se destacava. Os alunos ficaram conversando alto, cada vez mais
alto, até que vi pela primeira vez o professor perder a paciência e berrar
“SILÊNCIO! SILÊNCIO”, furiosamente, e todos se estacaram subitamente, calando a
boca instantaneamente e ficando imóveis.
O professor, ainda irado,
mas menos, disse a uma aluna que estava de pé no fundo da sala que ela “não
perde por esperar”, e ele voltou a anotar os meus horários de estágio. Pouco a
pouco o barulho foi retornando, os alunos paulatinamente conversando entre si,
mas num nível bem mais “tolerável” do que o que despertou a raiva do professor.
Dos 30 alunos presentes, menos de dez passaram algum tempo dando uma olhada em
suas anotações, ou seja, “estudando para Saresp”. Uma outra aluna ficou de pé,
conversando com colegas, mas o professor não chamou sua atenção.
Por motivos particulares
– por não concordar com o modo pelo qual a direção da escola e o professor que
me acompanhava lidavam com o meu estágio – deixei então de frequentar essas
aulas. Me impressionaram duas coisas: a alta qualidade pedagógica do material
didático e sua total falta de sintonia com o universo cultural dos “noventa por
cento”.
Publicado na revista Caros Amigos, edição XXX, de X de xxxx de 2013.